Confesso que “Ensaio sobre a cegueira” é o único livro de
Saramago que li até o momento. Preciso dizer que é uma obra difícil. Não pelo
vocabulário ou por conta de figuras de linguagem. Nada disso. O estilo é
simples, limpo, sem pegadinhas. O texto é difícil porque expõe, de uma vez só,
o que de pior temos. É uma obra difícil de engolir porque dá um nó na garganta.
Verdades nuas e cruas custam a ser digeridas.
O surto inexplicável de um tipo diferente de cegueira causa
alardes desde o princípio. Um homem fica cego de repente e parece contagiar aos
poucos quem está a sua volta. À medida que as pessoas vão cegando, elas são
levadas para um manicômio desativado, que, segundo o governo, tem a estrutura
apropriada para o controle da situação. A voz desconhecida do alto-falante que
repete o conjunto de regras ao longo do dia impõe um modelo de ordem. Ninguém
entra ou sai sem autorização. O ‘mal-branco’ traz consigo o pânico
generalizado. Afinal, o desconhecido é mais ameaçador do que fascinante.
Cada camarata
(setor) tem um comportamento. Na primeira, o médico assume o papel de líder de
forma natural. Ele ganha destaque por propor soluções e maneiras de organização,
sempre ouvindo a opinião de cada um. Aos poucos conquistou simpatia e confiança
dos outros.
Outra
camarata de destaque claramente é um reino onde vigora a lei do mais forte.
Nada de votação ou opinião alheia. O líder tem uma arma e isso é o suficiente
para justificar sua posição. Ao contrário da primeira, é um lugar onde a barbárie
e o temor ditam as regras.
No
confronto entre esses dois grupos surgem os principais dilemas da esposa do
médico, única personagem que não é atingida pelo ‘mal-branco’. Os únicos olhos
que vêem assumem a responsabilidade de restabelecer a ordem, mesmo que seja
necessário matar. No caos tudo é legítimo. Ou não?
A obra
traz questionamentos que, volta e outra, esbarramos, mas não enfrentamos. Como
reagir diante do desconhecido? A histeria é justificada pelo caos? Um por todos
e todos por um ou cada um por si?
Os
personagens não têm nome. Todos são identificados como foram apresentados ao
leitor: ‘O primeiro cego’, ‘o médico’, ‘a mulher do médico’, ‘o ladrão do
carro’, ‘a rapariga dos óculos escuros’, ‘o velho da venda preta’. Afinal, por
que nomear se são características que deixam marcas?
Recomendo
o livro não só como uma opção de boa literatura, mas também como um guia de
reflexão sobre como podemos ser, ou como somos e nem nos demos conta. Ah, talvez
em alguns momentos você feche o livro para respirar fundo e pegar um pouco de
fôlego para encarar algumas verdades sobre a natureza humana.
"Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."
Um comentário:
Nooossa. Que texto mara.. Deu até vontade de ler o livro, mesmo já tendo visto o filme. :D
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